sexta-feira, 4 de abril de 2008

Flâneur, Deriva, Modernidade e Situações.

Walter Benjamin analisa a obra de Charles Baudelaire, para nesta tentar localizar as transformações que a modernidade gera nas cidades e consequentemente nos homens, ele se encontra com o flâneur, aquele que perambula pelas ruas, que emerge na multidão de anônimos e vivência a cidade de forma lúdica.

A modernidade trouxe consigo a ordem e moral burguesa, a forma de organização das fábricas, aplicada na vivência das pessoas, na forma como se locomovem e como agem na metrópole. Para Baudelaire neste momento, o artista deveria tornar-se um “Botânico das calçadas”, ou seja, alguém que pudesse aplicar a fisiologia nas metrópoles. Para Benjamin, Baudelaire consegue através de sua obra imergir na cidade e vivenciando de a vida nesta de forma diferenciada, ele se posiciona diante da modernidade. Ele a confronta de forma lírica quando vive o boêmio, o flâneur, o usuário de haxixe, etc. A industrialização da vida tenta também industrializar a poesia e Baudelaire desafia as regras deste jogo social.

A sociedade moderna capitalista é também a sociedade da dicotomia, público/ privado, homem/ cidadão, etc. Para o burguês a casa, o espaço privado, o espaço do homem torna-se um lugar de despolitização, onde a harmonia da decoração deve ser o lugar de refúgio das contradições e da feiúra do mundo lá fora. Mas somente para os burgueses a casa representa o domínio privado por excelência. Para as camadas mais pobres da sociedade urbanas, as moradias coletivas criam uma nova forma de experiência. O constrangimento criado pelo Estado, por considerar estas moradias coletivas lugares anti-higiênicos, faz com que os pobres moradores de cortiços, façam o uso privativo do espaço público e através das barricadas, lutem para redefinir ambos.

A partir da metade do século XIX, o planejamento urbano de paris visando reduzir estes choques e conciliar os interesses do Estado e dos grandes grupos financeiros faz com que Paris se torne uma cidade fragmentada, onde cada região era como pequenos mundos incomunicáveis. A diferenciação entre bairros ricos e pobres levou à expansão da periferia da cidade, assim como a separação entre a residência e o local de trabalho tornou necessária a criação de uma rede de transportes capaz de garantir a circulação regular entre uma zona da cidade e outra.

E é neste momento que Baudelaire nos mostra o flâneur, o vagabundo errante, sobrepõe o ócio ao “lazer”, é aquele que se contrapõe a vida como um modo de produção serial, a esquizofrenizante divisão do espaço moderno, desafiando a divisão do trabalho. Ele não existe sem a multidão, mas não se confunde com ela. Ele caminha no meio da multidão e o efeito narcotizante que esta exerce sobre flâneur, é o mesmo que a mercadoria exerce sobre a multidão.

Na década de 50 do século XX, um grupo de intelectuais, artistas e agitadores franceses, conhecidos pelo nome de Internacional Situacionista liderados pelo “doutor em nada” Guy-Ernest Debord, descontentes com o modo de vida e de consumo da sociedade mercantil espetacular, imposta pelo capitalismo moderno, perceberam que o novo urbanismo que reconfigurou a as metrópoles francesas, haviam transformado a vida social em espetáculo, onde os agentes sociais não passavam de espectadores de suas próprias vidas. Toda a participação social havia sido destruída pelo capital e a mercadoria era o único sujeito real desta ordem. Perceberam portanto que a cidade deveria ser recriada conforme a situação gerada no momento, ou ainda, a situação construída designava um “momento da vida, construído concreta e intencionalmente para a organização coletiva de um ambiente unitário e de um jogo de acontecimentos” (JACQUES, 2003).

Criaram, portanto a técnica ou o método experimental chamado de Deriva, que visa re-conhecer ou redescobrir a cidade desconstruindo as formas culturais tradicionais e impregnadas de pré-concepções, se utilizando de um caminhar sem direção ou rumo pré-definido.
“As grandes cidades são favoráveis à distração que chamamos de deriva. A deriva é uma técnica do andar sem rumo. Ela se mistura à influência do cenário. Todas as casas são belas. A arquitetura deve se tornar apaixonante. Nós não saberíamos considerar tipos de construção menores. O novo urbanismo é inseparável das transformações econômicas e sociais felizmente inevitáveis. É possível se pensar que as reinvidicações revolucionárias de uma época correspondem à idéia que essa época tem da felicidade. A valorização dos lazeres não é uma brincadeira. Nós insistimos que é preciso se inventar novos jogos (...) Entre os diversos procedimentos situacionistas, a Deriva se apresenta como uma técnica de passagem rápida por ambiências variadas. O conceito de deriva está indissoluvelmente ligado ao reconhecimento de efeitos de natureza psicogeográfica e à afirmação de um comportamento lúdico-construtivo, o que o torna absolutamente oposto às tradicionais noções de viagem e de passeio” (DEBORD, 1958).

Conforme o descrito acima, podemos encontrar semelhanças latentes entre o flânerie e a Deriva, pois ambos se contrapõem ao modo de vida hegemônica do capitalismo, a transformação do tempo-livre em tempo-lazer mediado pela mercadoria, e valorizam a criação de novos jogos, novas situações (por isso o nome situacionistas), que priorizem a participação social. Tanto o vagabundo consciente encontrado por Walter Benjamin na obra de Baudelaire, quanto o vivenciador e criador de novas situações dos situacionistas se posicionam diante da modernidade de forma crítica. E tentam através de um novo olhar em relação a cidade, agir no mundo de forma lúdica e ativa e não contemplá-lo passivamente, e para isso se faz necessário criar novos jogos.

Bibliografia.

BENJAMIN, Walter. “Charles Baudelaire: Um lírico no auge do capitalismo” in: Obras Escolhidas volume III. Ed. Brasiliense.

JACQUES, Berenstein Paola. Apologia da Deriva. Escritos situaconistas sobre a cidade. Ed. Casa da Palavra, rio de janeiro, 2003.

terça-feira, 25 de março de 2008

Já que a sugestão foi feita, lá vai.
É uma música do Fugazi. Qualquer dia falo um pouco sobre essa banda, que tem uma postura polítca muito foda. Por ora vai a letra de uma música do último disco lançado, The Argument de 2001. Está em inglês, mas acho que é tranquilo de entender (acho que traduzir literalmente fica meio tosco). De maneira geral a letra trata de desapropriação, "remoção forçada de pessoas", "o desenvolvimento quer esse bairro" e foda-se quem tiver que ir pra rua.


Cashout
on the morning of the first eviction
they carried out the wishes of the landlord and his son
furniture's out on the sidewalk next to the family
that little piggie went to market,
so they're kicking out everyone

talking about process and desmissal forced removal of the people
on the corner shelter and location
everybody wants somewhere

the elected are such willing partners
look who's buying all their tickets to the game
development wants, development gets
it's official
development wants this neighborhood
gone so the city just wants the same

talking about process and dismissal
forced removal of the people on the corner shelter and location
everybody wants somewhere
everybody wants somewhere

Segue um vídeo da banda tocando esta música ao vivo em Louisville, Kentucky, em 4 de abril de 2002


segunda-feira, 10 de março de 2008

músicas urbanas

nós amantes de cidades, também ouvimos muitas músicas que falam do tema.
assim, em breve exporei aqui minha coleção particular de letras que cantam a vida na cidade.....
as angústias, os desencontros, o cotidiano, a cidade à noite, de dia....

segunda-feira, 3 de março de 2008

Pela liberdade de respiração da epiderme

Não é novidade que o espaço do mundo coorporativo é um ambiente de estranhamento. Pura irracionalidade racionalizada. Coisa que quem acha bonita uma avenida como a Berrini ou a Faria Lima em São Paulo talvez não entenda. A "beleza" de suas fachadas envidraçadas esconde para muitos a natureza peçonhenta desses não-lugares.
Também estranho ao humano é o espaço interior desses prédios, no qual os próprios colegas agem como fiscais, e a baia individual não esconde o rosto cansado e entediado do trabalho alienado. O ar condicionado e as janelas que não abrem são um exemplo do controle do espaço. Não parece existir lacuna para o diferente. E a dominação também se estende ao vestuário.
Alguns dirão que o terno é a roupa da pessoa bem sucedida. Não discutiremos no momento esse conceito bizarro no qual sucesso se traveste de obrigação e labor. Deixemos isso de lado e vamos diretamente à análise de certos fatores: porque a calça, a camisa e o sapato são obrigatórias aos homens? Porque não a bermuda, a camiseta regata e o chinelo? Em um país tropical como o Brasil nada mais contraditório do que a Vila Olímpia às 9 horas de uma manhã de fevereiro, com suas centenas de executivos que parecem terem saído de um molde. Enquanto isso as mulheres estão liberadas (e em alguns lugares obrigadas) a fazer uso de saias, vestidos sem manga e sandálias. Vejam bem caros colegas, não quero iniciar uma guerra de gêneros. A questão é muito mais primordial e ao mesmo tempo superficial do que isso. Superficial inclusive é um termo bem apropriado.
O que difere os homens das mulheres nessas superfícies corporais que por um lado devem ser escondidas por uns e mostradas por outras? Já lhes digo: o pêlo!
A civilização pode ser resumida em um termo: controle. Controle como distanciamento da condição animal do humano. Controle das pulsões. Controle do espaço-tempo. Tudo o que é considerado "irracional" passa a ser idealizado, distanciado de toda a sua verdade e transformado em mentira, no contrário de si mesmo. É a racionalização da sociedade que torna irracional tudo o que é verdadeiramente humano. Já disse que o mundo coorporativo é uma das expressões máximas desse processo. Quando é que algo tão natural, tão gutural aliás, como o pêlo poderia ter lugar nesse não-lugar? A lembrança de que somos algo além de trabalho deve ser evitada a qualquer custo, escondida atrás de roupas ou simplesmente raspada e depilada. A barba é quase uma anomalia, e quando aparece está estilizada. O cabelo, com sua função historicamente estética não entra nesse quesito, é algo tolerado enquanto não excede um comprimento específico. É o mundo sem cheiro, sem gosto, sem sexo, sem graça.
E como é que engolimos que "a vida é assim mesmo"?
Isso não tem nada a ver com vida.

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Dois livros me tiraram o sono em algumas noites de janeiro a fevereiro do presente ano: um afegão e outro catalão. Pontos de vista completamente distintos e temáticas radicalmente distantes não foram capaz de me dissuadir em buscar certa unidade neles.
Não sei se estou com a visão obcecada ou se quero criar argumentos para justificar este blog (nascido de 2 cérebros e 4 mãos originalmente de uma idéia de escrever crítica de filmes e livros) mas para mim, eles narram cidades vivas e não apenas os cenários ideais das tramas.
É certo que os dois autores contam com efeitos estilísticos de guerras atrozes para mostrar o potencial de destruição, a atmosfera de sombras e trevas que se abateu sobre cidades como Barcelona (durante a guerra civil - meados da década de 30) e Cabul (anos 90), porém o recurso acaba por auxiliar na composição do enredo denso e do cotidiano urbano dos personagens.

Para leitores vorazes e amantes de cidades ainda desconhecidas no coração do Afegão ou na península ibérica, aí estão duas pedidas.
A Sombra do Vento - Carlos Ruiz Zafón
A cidade do Sol - Khaled Hosseini

alma da cidade

sou a cara da cidade, sua alma sem rosto
arquétipo materializado do andarilho anônimo
vivido na pele do burguês romântico ou do mendigo contemporâneo
encorajando tímidos escritores sem voz
amadores e veteranos artistas de ruas
acadêmicos e homens de letras que, diferente dos boêmios de sarjeta, nela se deitam por pura vaidade catedrática
e se engalfinham por sua total definição e vigília teórica

mas resisto porque a humanidade ainda não soube inventar obra maior, nem reunir a mais estranha coleção de tipos humanos e sociais

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

da Teoria da Deriva

Entre os diversos procedimentos situacionistas, a deriva se apresenta como uma técnica de passagem rápida por ambiências variadas. O conceito de deriva está indissoluvelmente ligado ao reconhecimento de efeitos de natureza psicogeográfica e à afirmação de um comportamento lúdico-construtivo, o que o torna absolutamente oposto às tradicionais noções de viagens e de passeio.

Uma ou várias pessoas que se dediquem à deriva estão rejeitando, por um período mais ou menos longo, os motivos de se deslocar e agir que costumam ter com os amigos, no trabalho e no lazer, para entregar-se às solicitações do terreno e das pessoas que venham a encontrar. A parte aleatória não é tão determinante quanto se imagina, mas em sua unidade, a deriva contém ao mesmo tempo esse deixar-se levar e sua contradição necessária.

O acaso ainda tem importante papel na deriva porque a observação psicogeográfica não está ao todo consolidada. Mas a ação do acaso é naturalmente conservadora e tende, num novo contexto, a reduzir tudo à alternância de um número limitado de variantes e ao hábito.

O caráter principalmente urbano da deriva, no contato com centros de possibilidade e de significações que são as grandes cidades transformadas pela indústria, procura responder à frase de Marx: "Os homens não vêem nada em torno de si que não seja o próprio rosto, tudo lhes fala deles mesmos. Até a paisagem é algo vivo."

As lições da deriva permitem estabelecer os primeiros levantamentos das articulações psicogeográficas de uma cidade moderna. Além do reconhecimento de unidades de ambiência, de seus componentes fundamentais e de sua localização espacial, percebem-se os principais eixos de passagem, as saídas e as defesas. Medem-se as distâncias que separam de fato duas regiões de uma cidade, distâncias bem diferentes da visão aproximativa que um mapa pode oferecer.

As diferentes unidades da atmosfera e de moradia não são hoje em dia muito nítidas, e sim cercadas de margens fronteiriças mais ou menos extensas. A mudança mais geral que a deriva leva a propor, é a diminuição constante dessas margens até sua completa supressão.

Apresentação

Este blog deseja tocar os corações urbanos ávidos pelo reencontro da deriva.
Este espaço é um convite a quem cultiva o particular gosto por flanar solitariamente pelas cidades invisíveis como Zenóbia, Fedora, Ercília, Cabul, Porto Alegre, Montevidéu, São Paulo, Barcelona, Belém, Rio de Janeiro, Buenos Aires, Pirenópolis, Penedo, Santos, Ilhéus. Saudamos o colecionador excêntrico de souvenirs singelos como calçamentos de ruas, muros e vielas grafitadas, fragmentos descascados de escadarias, pedaços amassados de poesias de bar, postais envelhecidos e marcadores de páginas feitos com folhas de árvores caídas.
Buscamos o caminhante intrépido (ao contrario do turista de simulacros) que tem prazer em reinventar um caminho e inadvertidamente, se perde por ruas inéditas, de topografia irregular ou mais compridas, abandonando o roteiro do mapa turístico e o conselho da vizinhança local. Procuramos aquele que contempla a turba anônima numa capital qualquer em hora de rush e que na ausência de horizonte para descansar a vista pousa o olhar num ponto fixo, imóvel, hipnotizado e alheio ao bombardeio imagético das vitrines sem fim da estética globalizada. Ou aquele que compartilha daquela hora letárgica de fim de expediente refletindo sobre o sentido de um momento terrestre familiar onde a inércia de quadris e ombros cansados sem encosto ou assento buscam magistral equilíbrio na aglomeração do vagão.
São bem vindos também os loucos e suicidas como os escaladores de taludes de cidades planejadas, os moradores de arranha-céus, os corajosos atravessadores de semáforos impiedosos, os pedestres do improviso em avenidas marginais, os boêmios sem esquinas de Brasília e todos os sem-calçada e sem-ciclovias.