sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Dois livros me tiraram o sono em algumas noites de janeiro a fevereiro do presente ano: um afegão e outro catalão. Pontos de vista completamente distintos e temáticas radicalmente distantes não foram capaz de me dissuadir em buscar certa unidade neles.
Não sei se estou com a visão obcecada ou se quero criar argumentos para justificar este blog (nascido de 2 cérebros e 4 mãos originalmente de uma idéia de escrever crítica de filmes e livros) mas para mim, eles narram cidades vivas e não apenas os cenários ideais das tramas.
É certo que os dois autores contam com efeitos estilísticos de guerras atrozes para mostrar o potencial de destruição, a atmosfera de sombras e trevas que se abateu sobre cidades como Barcelona (durante a guerra civil - meados da década de 30) e Cabul (anos 90), porém o recurso acaba por auxiliar na composição do enredo denso e do cotidiano urbano dos personagens.

Para leitores vorazes e amantes de cidades ainda desconhecidas no coração do Afegão ou na península ibérica, aí estão duas pedidas.
A Sombra do Vento - Carlos Ruiz Zafón
A cidade do Sol - Khaled Hosseini

alma da cidade

sou a cara da cidade, sua alma sem rosto
arquétipo materializado do andarilho anônimo
vivido na pele do burguês romântico ou do mendigo contemporâneo
encorajando tímidos escritores sem voz
amadores e veteranos artistas de ruas
acadêmicos e homens de letras que, diferente dos boêmios de sarjeta, nela se deitam por pura vaidade catedrática
e se engalfinham por sua total definição e vigília teórica

mas resisto porque a humanidade ainda não soube inventar obra maior, nem reunir a mais estranha coleção de tipos humanos e sociais

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

da Teoria da Deriva

Entre os diversos procedimentos situacionistas, a deriva se apresenta como uma técnica de passagem rápida por ambiências variadas. O conceito de deriva está indissoluvelmente ligado ao reconhecimento de efeitos de natureza psicogeográfica e à afirmação de um comportamento lúdico-construtivo, o que o torna absolutamente oposto às tradicionais noções de viagens e de passeio.

Uma ou várias pessoas que se dediquem à deriva estão rejeitando, por um período mais ou menos longo, os motivos de se deslocar e agir que costumam ter com os amigos, no trabalho e no lazer, para entregar-se às solicitações do terreno e das pessoas que venham a encontrar. A parte aleatória não é tão determinante quanto se imagina, mas em sua unidade, a deriva contém ao mesmo tempo esse deixar-se levar e sua contradição necessária.

O acaso ainda tem importante papel na deriva porque a observação psicogeográfica não está ao todo consolidada. Mas a ação do acaso é naturalmente conservadora e tende, num novo contexto, a reduzir tudo à alternância de um número limitado de variantes e ao hábito.

O caráter principalmente urbano da deriva, no contato com centros de possibilidade e de significações que são as grandes cidades transformadas pela indústria, procura responder à frase de Marx: "Os homens não vêem nada em torno de si que não seja o próprio rosto, tudo lhes fala deles mesmos. Até a paisagem é algo vivo."

As lições da deriva permitem estabelecer os primeiros levantamentos das articulações psicogeográficas de uma cidade moderna. Além do reconhecimento de unidades de ambiência, de seus componentes fundamentais e de sua localização espacial, percebem-se os principais eixos de passagem, as saídas e as defesas. Medem-se as distâncias que separam de fato duas regiões de uma cidade, distâncias bem diferentes da visão aproximativa que um mapa pode oferecer.

As diferentes unidades da atmosfera e de moradia não são hoje em dia muito nítidas, e sim cercadas de margens fronteiriças mais ou menos extensas. A mudança mais geral que a deriva leva a propor, é a diminuição constante dessas margens até sua completa supressão.

Apresentação

Este blog deseja tocar os corações urbanos ávidos pelo reencontro da deriva.
Este espaço é um convite a quem cultiva o particular gosto por flanar solitariamente pelas cidades invisíveis como Zenóbia, Fedora, Ercília, Cabul, Porto Alegre, Montevidéu, São Paulo, Barcelona, Belém, Rio de Janeiro, Buenos Aires, Pirenópolis, Penedo, Santos, Ilhéus. Saudamos o colecionador excêntrico de souvenirs singelos como calçamentos de ruas, muros e vielas grafitadas, fragmentos descascados de escadarias, pedaços amassados de poesias de bar, postais envelhecidos e marcadores de páginas feitos com folhas de árvores caídas.
Buscamos o caminhante intrépido (ao contrario do turista de simulacros) que tem prazer em reinventar um caminho e inadvertidamente, se perde por ruas inéditas, de topografia irregular ou mais compridas, abandonando o roteiro do mapa turístico e o conselho da vizinhança local. Procuramos aquele que contempla a turba anônima numa capital qualquer em hora de rush e que na ausência de horizonte para descansar a vista pousa o olhar num ponto fixo, imóvel, hipnotizado e alheio ao bombardeio imagético das vitrines sem fim da estética globalizada. Ou aquele que compartilha daquela hora letárgica de fim de expediente refletindo sobre o sentido de um momento terrestre familiar onde a inércia de quadris e ombros cansados sem encosto ou assento buscam magistral equilíbrio na aglomeração do vagão.
São bem vindos também os loucos e suicidas como os escaladores de taludes de cidades planejadas, os moradores de arranha-céus, os corajosos atravessadores de semáforos impiedosos, os pedestres do improviso em avenidas marginais, os boêmios sem esquinas de Brasília e todos os sem-calçada e sem-ciclovias.